sobre a autora

Eu nunca quis ser bailarina

domingo, 4 de setembro de 2011

Tem horas que a única imagem que eu consigo enxergar direito é a da minha sapatilha de ponta pendurada no alto da janela. E o pior é que eu nem nunca gostei muito de balé. Espiava as outras pelo lado de fora, torcendo para conseguir deslizar as costas até formar um ângulo de noventa graus com o chão. Ou para escorregar bem devagarinho até as duas pernas ficarem retinhas, como o compasso aberto que eu ganhei na escola. Suspirava, descia as escadas e, no vestiário, tentava entender o que aquelas meninas tinham que eu não tinha. Por que elas mereciam fazer parte de um grupo que eu não merecia. Mais tarde, adulta, adolescente, jovem, sempre rodeei-me de amigos de todos os meus círculos sociais. Mas, das aulas de dança, tudo que eu trago são memórias de pouca elasticidade, peruca da Emília, gente falando russo e um desejo enorme de ir embora.

Pelo menos, tinham os ensaios gerais. Eram grandes acontecimentos, às vezes até maiores do que as próprias apresentações. Munidas de cantis de água, lancheiras com Cocas geladas, pedaços de bolo e sanduíches, nós nos preparávamos para uma tarde inteira de ensaio. Era a grande oportunidade de ver toda a escola, com seus vários níveis e estrelas, todos juntos. Aprender como a menina colocava grampo no cabelo. O que era aquele produto malcheiroso que fazia o pé parar de doer para ela rodopiar na ponta. Tentar entender o que era a despretensão de uma, o esforço da outra e a cobrança em cima de uma terceira. Imaginava o que elas - e eu - poderiam se tornar mais tarde. Se brilhariam na vida da mesma forma e com a mesma intensidade que iluminavam os palcos. Se as quedas representavam derrotas futuras, se a concentração sob gritos formaria cidadãs mais fortalecidas, se alguém ainda iria reparar em mim.

Do canto dos palcos, atrás de todas as outras, por oito anos eu tentei ser bailarina. Embora, tenho certeza, já soubesse que aquilo não era para mim desde a baby class. A elegância, a magreza extrema, a batalha contra as dores e os giros certeiros nunca foram para mim. Assistir ao ritual de esparadrapar os pés, dedo a dedo; xilocainá-los para disfarçar o estrago que viria; apertar a ponteira cor de rosa que amaciaria um pouco o impacto, tudo isso para esconder a dureza por trás da beleza da sapatilha. Que eu custei, mas consegui pendurar pela janela. E que agora balança no meu ritmo, na leveza que eu impus, na melodia que eu entoar.

O desapego do sobrevivente

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Agora eu dei para me emocionar com qualquer coisa. Mas assim, realmente não precisa ser nada demais. Comoção, medo, angústia, ansiedade, tudo é motivo de pequenas lagrimazinhas que não tem quem segure. Uma amiga disse: "Você tem que saber deixar as coisas e as pessoas irem embora". Um amigo falou que eu tinha crescido muito nesse tempo que passei fora. Um escritor relatou a distração típica das motoristas paulistanas que se maquiam, ouvem música e desviam de caminhões ao mesmo tempo. Pela primeira vez, eu pensei em como será ficar realmente sozinha. Durante a mudança, sumiram duas saias e um vestido de que eu gostava muito. Minha amiga de infância virou mestre. Parei para refletir e vi que não tenho frilas engatados e minha carreira como jornalista está suspensa por tempo indeterminado. O apelido que virou nome vai voltar a ser só apelido. Resignada com minhas novas demandas, minha mãe observou que eu já não sou mais a mesma.

Estava com preguiça dessa sensibilidade que viria. Começou quando tirei os postais da parede. Sempre que ia a restaurantes self-service, salões, vernissages, ficava maravilhada com aqueles pequenos cartões tão bacanas e coloridos, que às vezes serviam de propaganda, ou de repente eram só objetos de decoração mesmo. Decidi recolher alguns que mais me chamassem a atenção. Com vários acumulados em casa, delirava à noite, antes de dormir, tentando achar uma solução sobre o que fazer com eles. Empilhá-los na parede fina que fica depois das margens do armário, me disse um breve insight. Pronto. Até meus amigos começaram a separar para mim quando voltavam de viagem ou viam alguns interessantes em qualquer lugar. Na hora de encaixotar as coisas, percebi que deveria tirar os postais dali. Como eu imaginava, a parede ficou cheia de marcas de durex. Azar. Foi antes da metade que eu apoiei o braço direito e tentei conter o choro incontível. De despedida.

O ócio de ficar em casa sem trabalho já me tirou do sério. Hoje não mais. Tento entender que simbolismos vou levar e escolher quais eu preciso deixar para trás. Tento redescobrir o significado da palavra férias, coisa que eu nunca soube o que é no sentido literal, e que eu ensaio mais uma vez. Me afogo na desorganização que tomou conta do meu quarto e tenho usado as mesmas roupas por autoprotesto contra a minha falta de assiduidade. Reverei filmes que nunca me fizeram muito sentido só para ocupar a cabeça com outra coisa, e pode apostar que todos os segundos que eu tiver por aqui serão pensados, elaborados, aproveitados e saboreados de acordo com sua devida importância. Um relaxamento mental que não acontece na prática, mas que é absolutamente o máximo que eu posso fazer.

Dali da piscina aquecida, que suga as minhas forças e me dá um sono incontrolável todas as noites, eu reflito sobre as mudanças da vida. Em pequenos encontros, acho justificativas para ligar a pessoa que fui à que me tornei. E neste período de entressafras, não tenho exigido muito mais de mim mesma além de paciência e conformidade com o rumo da vida. Tolerância com as consequências das nossas escolhas. Peito aberto para as maravilhas que estão por vir. Medo das dificuldades que aparecerão. E quando não entendem, me afogo no livro de Camus, onde encontro todas essas explicações sintomaticamente aplicadas. Não, eu não preciso ter receio de chorar. Não mais. Porque é preciso se desapegar do passado e levá-lo junto ao mesmo tempo. E uma hora, mais cedo ou mais tarde, mais tarde provavelmente, eu vou aprender como se faz isso. E dizer que, na verdade, foi muito mais fácil e gostoso do que parecia no começo.

Eu olhei para mim

domingo, 26 de junho de 2011

Hoje eu estava no Museu da Casa Brasileira. Almoçando com os pais queridos de uma amiga mais querida ainda. E daí, chega um panfleto: A Aliança promove um concurso que premia quem mais bem retratar São Paulo com uma viagem para Paris.
Outro domingo, eu estava no plantão de esportes. Algo totalmente inusitado para mim. A pauta? Torneio de tênis. Em Roland-Garros.
Me pediram para escrever sobre restaurantes que funcionam dentro de lojas chiques. Fui falar sobre o Ralph's, da marca americana Ralph Lauren. Onde ele fica? Paris.
Aí um amigo de Belo Horizonte e Brasília e SP chama para um showzinho. Num bistrô. Com uma banda francesa. No Twitter, um amigo diz que foi num restaurante muito "descolado". Achando a expressão engraçada demais, perguntei qual. Le Répas, outro bistrô. Um passinho na rua e vejo uma folha, muito pequena, em que estava escrito: "La vie avec laquelle on rêve peut-elle exister".
A vida com que a gente sonha pode existir. Já estou com saudade de Sp, e mais saudade ainda virá, martelante sobre o meu peito. De tudo, das pessoas, dessa solidão que já bateu tão forte, dessa solidão na minha cama macia, do armário sempre aberto que mostra minhas roupas coloridas. Da Marilyn e Audrey que pouca gente conheceu, do Astolfo e Rodolfo, minhas pantufas que terão de ficar, dos postais que descansam ao lado do meu armário. De toda essa confiança que mais uma vez eu largo e deixo para trás, pra uma distância tão maior, pra um afastamento que vai ser pessoal, que me é grande. Que me é duro. De me abster de tanta coisa para buscar uma felicidade que me é necessária, enquanto que totalmente sem garantia.
Da calma que eu sinto enquanto vejo a chuva cair pela janela.
Do cinza que vem com a neblina.
Das conversas sob o varal da área de serviço.
Das poucas vezes em que eu fumei narguilé na sala.
De ter tanta segurança, e de ser adulta, e de ter tudo aquilo que eu mais gostaria.
Dentro da minha mala eu vou levar tudo isso, pode apostar. E o que ficar, um dia, quem sabe, eu volto para buscar. E empurro quem estiver na frente, e grito, e esperneio na volta, e mando ir embora dizendo: sai daqui que esse quarto é meu.
=]

Coração de gramática

terça-feira, 1 de março de 2011

Ando muito tempo em casa, mas meu coração está na lua.
Entediado, sozinho e porquanto, aflito, ele me pergunta, insistente, o que deve fazer. Como precisa se comportar agora, em mais este período de entressafras que o deixa tão desocupado. Tipo quando eu era criança e, nas férias, comia leite moça à tarde vendo Jaspion. Às vezes colocava Nescau e, outras, botava no microondas para esquentar com muita canela pra ficar igual ao da Cantina Fiorella, uma casa italiana que eu ia com meus pais e fazia um leitinho quente e doce para a gente pegar na saída em vez de café. Leite que, anos mais tarde, eu veria que era feito com açúcar quase queimado na panela da casa da amiga.
Como o chocolate, meu coração se dissolve aos poucos. Anda para lá, anda para cá, e bate às vezes no compasso errado. Daí eu preciso avisá-lo que não é por ali, que assim não vai resolver nada, que chega de meter os pés pelas mãos. E ele, desesperado, me insiste para sair, dar a cara a tapas, andar por aí em busca daquilo que eu sempre procuro. Mas desta vez, estou cansada. Gastei todas as energias que restavam em uma língua que eu não aprendi. De tanto lidar com as letras, esqueci como se tolera as pessoas e suas tantas impreviões. O ser humano que não tem regras gramaticais. Que a gente encontra e não sabe como vai se comportar. Descansei tanto sobre os livros que fiquei com preguiça de contatos reais. E meu coração reclama por isso.
Tem gente que fala que é fase, eu não sei não. Às vezes, tenho medo de ter virado uma ermitona, se é que esta palavra exista, de verdade. Pelo menos estou com gás para me empetecar como se tivesse um compromisso muito importante me esperando.
Deve ser compromisso comigo mesma.
Mas coração, tem que ter paciência. É o que dizem, quando a gente menos espera.... mas sossega, que minha cabeça só tem vaga para uma paixão de cada vez. E agora, ela está longe, longe, mas pode ficar perto, perto...

Damn it

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Não quero mais olhar para essas pessoas supertatuadas, ou ficar vendo esses grupos de meninas moderninhas que usam óculos escuros de coração, regata branca e cartola listrada. Eu cansei de não ter mais nada na minha cabeça e da última recordação que levo de qualquer coisa seja você. Cansei de saber que a gente não tem nada a ver, e ficar me perguntando afinal, quem é que tem. De chegar em casa, ver um casal entrando pelo portão e me sentir sozinha. De sentir preguiça de me arrumar porque não tenho para quem. De garantir que estou olhando para todos os lados e não estou perdendo nada, nenhuma possibilidade, sendo que na verdade sei que essas coisas não funcionam desta forma.

Cansei desta fase de vacas anoréxicas.

A história da paixão

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Tudo começou com um cartão. "Eu fico com você e você fica comigo", ele dizia. Eu era jovem, acreditava que essa frase poderia fazer muito sentido. Mas, na verdade, você me ensinou que algumas ousadias não podem ser levadas adiante. E me fez sentir cafona pela primeira vez.
Depois teve você, ao meu lado na sala de aula. Você fofo, de olhos de esmeralda - eu me lembro de um poema assim, sobre o olhar e o sorriso. A forma como você me fazia sentir especial e querida, o coração se jogar quando eu te via, a paixão de verdade. A carta. E o "desculpe, não sinto o mesmo", com tanta consideração.
De você, eu lembro do alto da escadaria do segundo andar do colégio. Distância. Que começou com a proximidade de uma dança colada, apenas uma troca boba de palavras sem importância que se seguiria para uma quase obsessão, uma espera sofrida, planos e maracutaias. Foi um beijo descuidado, para satisfazer um sonho meu que não era seu. E depois, indiferença.
Até que veio você, finalmente. Depois de tanta espera, alguém que levei cinco meses para convencer que valia a pena. E que se entregou completamente e também pela primeira vez. Que respeitou, acompanhou e apostou, apesar de todas as diferenças que seriam decisivas. Que levariam a tantas brigas que eu já não consigo mais nem me lembrar direito. Que me faria chorar tanto, e por quem eu faria grandes loucuras. O primeiro relacionamento e o primeiro problema sério. A incapacidade. O alívio depois do término. A gandaia pública.
Você apareceu um mês depois e, mesmo que hoje o considere um cara bem legal, classifiquei-o por muito tempo como o maior exemplar dos cafajestes. Não sentiu nada, mas me fez acreditar. Uma bobagem para você. Para mim, um suspiro profundo.
Você também foi muito esperado. Lembro de tudo como se fosse um filme belo, raro. Porque você foi raro, e coloriu a minha vida com tons que eu nem sabia que existiam. Vi fogos de artifício, vi o mundo parar, fechei os olhos e queria morrer de tanta felicidade. Não acreditava que aquilo tudo fosse para mim. Mas acabou com ônibus, ronco e 12 horas seguidas de choro. Eu não compreendi. Nos vimos algumas vezes depois e nos falamos outro dia. Que bom saber que você existiu daquele jeito maravilhoso. E que ainda está em algum lugar.
Aqui está o único ponto que eu não gosto muito de lembrar. Porque o marco foi dor, muita dor. Uma paixão incrível por uma pessoa completamente adoentada. Que mudou a minha história. Foi a primeira vez que me assassinaram e eu perdi um jeito de sorrir que tinha, sabe Quintana? Não acho que valha a pena lembrar das partes boas, mas ao seu lado eu passei a melhor noite da minha vida. E só por isso, já valeu a pena. Pronto. Todo o resto é ruim.
Você veio consertar tudo o que ele despedaçou. Pegou caquinho por caquinho e recolocou no seu devido lugar. É anjo. Deu carinho, atenção e cuidado. Me fez sentir merecedora e, hoje em dia, escolhida. A melhor pessoa que já passou pela minha vida. E que me marcou mais que qualquer outra, para sempre.
Você sacolejou e me fez ver que era capaz de me apaixonar de novo. Fez graças que não tiveram graça alguma. Não entendeu o que eu sentia, nem deu crédito. Não fez carinho ou questão de valorizar. Me fez ver muita coisa que não quis, mas nunca parece ter tido a real noção do que eu senti. Mas pediu desculpas, e por isso, eu perdoei. E te quero bem.
Você ainda não passou. Mas, a cada dia, as memórias parecem mais distantes. Uma pena que a intensidade possa ter sido tão desmedida - e causado tanto estrago. Espero que um dia possamos rir juntos de novo.

Sim, eu me apaixonei várias vezes, ainda bem. E sabe qual é o melhor de tudo? Saber que tem muito mais por vir.

Ando comigo

domingo, 24 de outubro de 2010

Hoje a minha amiga, muito estupefata depois de eu falar o que tinha feito na última noite, disparou o tiro: "Renata, você já reparou que faz dois sábados seguidos que você não sai para a balada?"
Eu tinha reparado. Na verdade, percebi isso enquanto olhava da minha cama pela janela e via o céu carregado na madrugada deste mesmo sábado. De camisola debaixo dos cobertores, eu respirava aliviada por poder dormir a hora que quisesse sozinha, sem ter ninguém a quem agradar. E também por não ter qualquer compromisso que me forçasse a sair dos meus ultraconfortáveis e convidativos edredons antes do exato momento em que desejasse. Tudo bem que acordei com um barulho de secador no banheiro ao lado, mas já eram 2h15 da tarde e o fim de semana voa. O fato é que escolhi, nesses dias e muitos outros recentemente, ficar bem quietinha comigo mesma. Pessoalmente, essa escolha é bem dificil. Na maioria das vezes, prefiro estar com qualquer outra pessoa. Mesmo que nos decepcionem, nos entediem e desagradem, distrações exteriores são sempre mais bem-vindas do que nossa própria companhia. Isso somente para alguns, é claro, eu inclusa. Mas acho que, no fundo, a novidade é boa. Significa que eu estou começando a apreciar melhor os momentos que tenho ao meu próprio lado.
Esses dias desejei loucamente chegar em casa logo para pedir comida chinesa e ver qualquer seriado desimportante na TV. Em algumas noites, recusei convites para drinks e vernissages para poder me embrulhar logo em meus acolchoados papeis de presente pessoais. Cheguei até a dar uma arrumadinha no meu armário, isso depois de chegar em casa e fechar logo a porta do quarto, hábito raríssimo e reservado aos momentos em que realmente não estou para papo com as colegas de casa. Minha próxima compra? Um abajur. Para poder ficar mais à vontade, à meia luz. Comigo.
Hoje também saí do filme na Mostra mais cedo. Não costumo apoiar esse tipo de decisão, mas eu estava cansada, com sono e um pouquinho de vontade de morrer de tanto tédio. Busquei aprovação das companheiras. "Você está gostando do filme? Acha que alguém vai me recriminar se eu for embora?" Depois do aval, fui. Fiquei superfeliz de ver que podia andar sozinha pelas ruas, entrar no meu carro e, enfim, já estar tão pertinho de casa. Sorridente, sem drama, sem indecisão.
Acho que o próximo passo é levar essa descoberta da solidão alegre para fora dessas quatro paredes. E ganhar a liberdade das ruas, como já diria um amigo. De mãos dadas comigo mesma.